Para a realização de Pesquisas em Comportamento Político utilizamos como referência o livro: Modernização, Mudança Cultural e Democracia (INGLEHART, Ronald; WELZEL, Christian. 2009).
Partindo dos conceitos apresentados pelos autores, e utilizando dados secundários coletados junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e dados primários obtidos em pesquisas eleitorais realizadas pelo Instituto Methodus– referentes às eleições municipais de 2020 no Rio Grande do Sul, fundamento o conceito de desalento eleitoral.
Inglehart argumenta:
Praticamente todas as antigas organizações hierárquicas comandadas pelas elites, tais como sindicatos, igrejas e partidos políticos estão perdendo simpatizantes. A filiação a partidos políticos está caindo acentuadamente. As máquinas políticas das grandes cidades perderam o controle sobre blocos antes confiáveis de eleitores leais, de forma que o comparecimento às urnas vem sofrendo um processo de estagnação e declínio. (INGLEHART; WELZEL, 2009, p. 152).
Observo que o autor trata, em sua análise, principalmente do eleitor americano. Portanto é fundamental relembrar que, diferentemente do Brasil, onde o voto é obrigatório, inclusive com pagamento de multa em caso de descumprimento da obrigação; o voto nos EUA é facultativo, ou seja, a população pode decidir entre votar ou não.
Por essas razões, a abordagem utilizada para explorar a questão da fuga do mundo democrático será realizada através de uma análise sobre o comportamento do eleitor brasileiro – que em períodos eleitorais vem consistentemente optando por se retirar do processo de votação. Como citado anteriormente, a obrigatoriedade do voto no Brasil possibilita a quantificação de três tipos de comportamento de retirada, que são o voto nulo, o branco e a abstenção. Levando-me à proposição de uma nova categoria para esta abordagem:
O DESALENTO ELEITORAL
O conceito de Desalento Eleitoral fundamenta-se em três pilares, que são o voto em branco, o voto nulo e a abstenção. As três categorias recebem, por parte do TSE, definições que auxiliam na sua correta compreensão e que estão parcialmente refletidas abaixo:
Voto em Branco – Aquele em que o eleitor não manifesta preferência por nenhum dos candidatos, votos brancos não são contados e, portanto, são descartados para fins de cálculo dos resultados eleitorais.
Voto Nulo – O voto nulo é apenas registrado para fins estatísticos e não é computado como voto válido, ou seja, não vai para nenhum candidato, partido político ou coligação. Votos nulos não são contados e, portanto, são descartados para fins de cálculo dos resultados eleitorais.
Abstenção – Termo usado para definir a não-participação do eleitor no ato de votar. O eleitor que se abstém deixa de ser um eleitor apto e só poderá retornar a participar de novas eleições após regularizar sua situação junto ao Tribunal Regional Eleitoral de seu estado.
Pelo exposto, por Desalento Eleitoral deve-se compreender: o contingente de eleitores em estado de desconfiança e desânimo, que sistematicamente manifesta sua posição através do voto em branco, nulo ou abstenção nas eleições brasileiras.
Inglehart argumenta:
A desilusão com a democracia foi amplamente disseminada na sociedade Latino Americana. Resultados de políticas decepcionantes diminuíram drasticamente as expectativas quanto a eficácia da participação democrática e reduziram os níveis anormalmente altos de participação na oposição as elites. (INGLEHART; WELZEL, 2009, p. 155).
Postulado o conceito de Desalento Eleitoral, é possível obter sua contabilização, a partir dos dados disponibilizados pelo TSE sobre os eleitores aptos a votar nas eleições brasileiras.
Em 2020, de acordo com os dados oficiais, o Brasil tinha cento e quarenta e sete milhões, novecentos e dezoito mil, quatrocentos e oitenta e três eleitores aptos a votar (147.918.483)
Para aferição do Desalento Eleitoral, agrupam-se os eleitores que nas eleições brasileiras votam em branco, nulo ou se abstêm, obtendo-se assim o contingente de eleitores desalentados brasileiros em cada eleição avaliada.
Desalento Eleitoral = Voto Branco + Voto Nulo + Abstenções
Para o cálculo do percentual do Desalento Eleitoral, divide-se o total de eleitores desalentados pelo total de eleitores aptos a cada eleição avaliada.
% Desalento Eleitoral (D.E.) = (Desalento eleitoral / Eleitores aptos) * 100
Abaixo, exemplo de aplicação do cálculo do percentual, utilizando os dados das eleições municipais no Brasil em 2020.
%D.E. – 2020 = (48.813.099 / 147.948.843) * 100 = 33%
Estabelecidos os marcadores, necessários à compreensão do conceito proposto, é possível avançar.
O DESALENTO ELEITORAL É UMA REALIDADE DA QUAL DEVEMOS NOS OCUPAR?
O conceito vulgar e recorrente no meio social e político brasileiro considera que o eleitor entra em Desalento Eleitoral por falta de identidade ideológica com os candidatos ou partidos, supondo equivocadamente que a cada eleição será zerada a contagem. Consideram ingenuamente que o total de eleitores desalentados retornará e participará da próxima eleição. Como observaremos na série histórica de 2008 a 2020, não se evidenciam justificativas que corroborem tal conclusão.
O mapa do desalento apresentado abaixo identifica o percentual do Desalento Eleitoral ao longo da série histórica, proposta para este estudo. Iniciando nas eleições municipais de 2008, período de crescente estabilização e crescimento econômico, como demonstram os resultados do PIB daquele ano. É possível observar que o percentual do Desalento Eleitoral persiste ao longo das sucessivas eleições, desconectando-se do indicador econômico e dos valores democráticos. Esses dados contribuem para a compreensão do conceito, revelando que, independentemente da situação econômica, matiz política ou condição social, a cada eleição avaliada o desalento cresce no Brasil, chegando à casa dos quarenta e oito milhões de eleitores em 2020.
Mapa do Desalento Eleitoral de 2008 a 2020 – Base Brasil
Eleições |
PIB |
Brancos |
Nulos |
Abstenção |
Eleitores Aptos |
% Desalento Eleitoral |
Total Desalento |
Votos Válidos |
2008 -Municipais |
5,1 |
3% |
7% |
14,5% |
128806592 |
25% |
32201648 |
96604944 |
2010 – Presidenciais |
7,5 |
3% |
6% |
18% |
135804433 |
27% |
36667197 |
99137236 |
2012 -Municipais |
1,9 |
3% |
8% |
16% |
138544348 |
27% |
37406974 |
101137374 |
2014- Presidenciais |
0,5 |
3,8% |
5,8% |
19,4% |
142820753 |
29% |
41418018 |
101402735 |
2016 -Municipais |
-3,6 |
3,5% |
8,9% |
17,6% |
144088912 |
30% |
43226674 |
100862238 |
2018- Presidenciais |
1,1 |
2,6% |
6,1% |
20,3% |
147306275 |
29% |
42718820 |
104587455 |
2020 -Municipais |
-4,1 |
3,5% |
6,2% |
23,2% |
147918483 |
33% |
48813099 |
99105384 |
Inglehart argumenta:
Do ponto de vista do desenvolvimento humano, o elemento crucial da democratização é o fato de ela aumentar o poder das pessoas. A democracia proporciona direitos civis e políticos, assegurando o direito das pessoas à liberdade de escolha em suas ações privadas e públicas. Ainda, um número crescente de observadores tem notado que muitas das novas democracias apresentam graves deficiências em sua prática efetiva das liberdades civis e políticas. (INGLEHART; WELZEL, 2009, p. 187)
O autor observa ainda que democracias puramente formais ou eleitorais, como é caso da democracia brasileira, podem proporcionar ou não uma escolha autônoma e genuína aos seus cidadãos.
A partir desse ponto, algumas questões podem ser propostas:
- É possível conhecer o eleitor desalentado?
- Quais são os dados de que dispomos, a respeito dos eleitores desalentados, que contribuam para a compreensão de sua posição?
- A partir desses dados, é possível afirmar que o eleitor desalentado está em fuga do mundo democrático?
Investigando as bases de dados oficiais, pouco se encontra de informações detalhadas a respeito das duas primeiras categorias que compõem o Desalento Eleitoral (i.e., os eleitores que votaram nulo ou branco na série histórica), obtendo-se somente o percentual total de cada categoria. Para a abstenção, dispomos de informações importantes, como idade e escolaridade, ampliando nossa compreensão sobre estes eleitores.
Perfil dos eleitores que se abstêm – Base eleições presidenciais – 2018
Escolaridade |
% dos Eleitores aptos |
% de Abstenção |
Analfabetos/Lê e escreve |
13% |
36% |
Ensino Fundamental |
33% |
22% |
Ensino Médio |
40% |
16% |
Ensino Superior |
14% |
12% |
Faixa de Idade |
% dos Eleitores aptos |
% de Abstenção |
Até 24 anos |
15% |
19% |
De 25 a 49 anos |
50% |
17% |
De 50 a 69 anos |
26% |
14% |
Acima de 70 anos |
8% |
63% |
Observando os dados apresentados, algumas conclusões são possíveis:
Os eleitores analfabetos/analfabeto funcional (lê e escreve), seguidos pelos eleitores com Ensino Fundamental, são aqueles que mais se abstêm – parcela significativa dos eleitores com maior carência de serviços e assistência por parte do Estado.
Observa-se ainda que, à medida que a escolaridade avança, o percentual de abstenção diminui para a casa dos 16% no ensino médio e 12% no ensino superior, ou seja, o maior contingente de eleitores votantes está justamente entre a parcela mais esclarecida dos eleitores. Segue-se o maior índice de abstenção entre jovens até 24 anos, totalizando 19%, seguido pelo expressivo percentual de 63% entre eleitores acima de 70 anos.
A compreensão desse perfil é uma das chaves de leitura para o Desalento Eleitoral.
Mas, afinal, é possível encontrar justificativas para o desalento eleitoral?
O junho de 2013 já é histórico. Milhões de brasileiros foram às ruas das principais cidades do país após décadas de apatia social. Isso sem a convocação de figuras públicas ou entidades tradicionais dos movimentos sociais – e contra as orientações da grande imprensa, que insistia em rotular todos os manifestantes de vândalos e baderneiros no início da revolta, clamando por uma repressão mais dura da polícia. A onda despertou tanto interesse quanto confusão entre a academia e as organizações sociais, em todo o espectro político.
Pesquisa realizada pelo Instituto Methodus, em 2013, com manifestantes na cidade de Porto Alegre, revelou que duas das principais motivações para participar dos protestos foram:
Lutar por um país melhor – 48%
O desejo de mudança na política – 13,8%
A maioria dos entrevistados nas manifestações tinham até 24 anos de idade (49%) e formação no ensino superior (54,8%), revelando a significativa participação de filhos da classe média e informada.
O ano de 2018 foi marcado, entre o final de maio e o início de junho, pela greve dos caminhoneiros, movimento que paralisou estradas, esvaziou prateleiras de mercados e demonstrou a insatisfação da categoria de caminhoneiros com a nova política de preços da Petrobras, definida pelo governo do presidente Michel Temer (MDB), além de trazer críticas a todo o sistema político.
Pesquisa nacional sobre a greve dos caminhoneiros, realizada pelo Instituto Methodus com eleitores brasileiros em maio de 2018, registrou que:
Para 52% dos entrevistados, o Desalento Eleitoral era a primeira opção de manifestação nas eleições presidências a serem realizadas em 2018.
A análise dos resultados de pesquisa qualitativa realizada pelo Instituto Methodu, em 2018, com eleitores em Desalento Eleitoral nos estados do Rio Grande do Sul (RS), Paraná (PR) e Santa Catarina (SC) – investigando suas principais justificativas – levou às seguintes conclusões:
Política não é algo fácil de se entender;
O voto branco, nulo e a abstenção são uma forma de protesto;
Informações sobre política são consumidas de forma reativa, nunca propositiva;
Acreditam que, se mais da metade da população se abstiver, anular ou votar em branco, as eleições serão anuladas;
Candidatos presidenciais não são pessoas próximas da população.
Observa-se, com base nesse estudo:
1) Que o conceito proposto de Desalento Eleitoral indica a posição do eleitor em relação ao processo eleitoral brasileiro;
2) Que os dados apresentados corroboram o entendimento de que sua manifestação é uma forma consistente e legitima de protesto;
3) Que parte significativa desses eleitores não encontra identidade ou representatividade no processo eleitoral e possivelmente na democracia eleitoral brasileira.
APLICANDO O CONCEITO DE DESALENTO ELEITORAL
Em 38 municípios gaúchos com até 50.000 eleitores, acompanhados por pesquisas eleitorais realizadas pelo Instituto Methodus no ano de 2020, o Desalento Eleitoral não foi identificado. Nesses municípios, a média ficou abaixo de 12%, percentual inferior à média nacional e dentro do período em estudo (2008 a 2020) não apresentaram crescimento.
A hipótese para tal observação é de que as instituições, os políticos e os eleitores possuem maior sinergia em cidades menores, revelando que a proximidade dos agentes políticos com o eleitor, o correto entendimento de suas necessidades e expectativas possuem impacto direto na participação democrática e consequentemente no voto.
Aplicando o conceito, observa-se, em cinco capitais avaliadas, o crescimento significativo do desalento eleitoral no período entre 2008 e 2020.
Capitais |
% do Desalento 2008 |
% do Desalento 2020 |
RS – Porto Alegre |
25% |
43% |
RJ – Rio de Janeiro |
31% |
51,10% |
SP – São Paulo |
24% |
45% |
MG – Belo Horizonte |
31% |
42,20% |
BA – Salvador |
27% |
39,50% |
Pesquisas eleitorais divulgadas no Brasil planejam seu plano amostral sobre o total de eleitores aptos a votar, ou seja, não ponderam suas entrevistas a partir do Desalento Eleitoral. A falta dessa ponderação pode induzir o analista a uma falácia ecológica, posto que a interpretação dos resultados analisados não representa o contingente total da população em estudo, mas somente a parcela dos eleitores aptos que destinaram o voto a algum candidato, como apresentado ao longo deste estudo.
A título de exemplo, apresento a aplicação de um resultado hipotético de pesquisa, utilizando o ano de 2018 como referência:
Em 2018, os eleitores aptos no Brasil somavam 147.306.275, e o desalento eleitoral chegou a 29%. Considerando essas duas variáveis, aplicamos a ponderação para análise de possível resultado de pesquisa.
1 – Resultado sem ponderação do desalento |
||
Candidatos |
Resultado em % |
Número de votos |
A |
42% |
62.868.635 |
B |
31% |
45.664.945 |
C |
27% |
39.772.694 |
2 – Resultado com ponderação do desalento 29% |
||
Candidatos |
Resultado em % |
Número de votos |
A |
42% |
42.926.731 |
B |
31% |
32.422.111 |
C |
27% |
28.238.612 |
Resultados como o exemplificado são recorrentemente interpretados, tomando-se como verdadeira a opinião da totalidade dos eleitores. Como observado, o resultado da segunda tabela, após a ponderação, leva em conta o contingente de quarenta e dois milhões de eleitores que permaneceram em desalento e, portanto, não participam diretamente do resultado apresentado na simulação da tabela 1.
CONCLUSÃO
Compreender o Desalento Eleitoral possibilita ao observador a aproximação de uma nova interpretação sobre os recentes resultados eleitorais no Brasil. Sob esse aspecto, é necessário reconhecer que parcela significativa dos eleitores brasileiros está de costas para o cotidiano político, mantendo-se afastada de temas eleitorais, polarizações políticas ou debates sociais. A significativa parcela de eleitores em fuga democrática revela a flagrante fragilidade da democracia eleitoral brasileira.
REFERÊNCIAS
INGLEHART, Ronald; WELZEL, Christian. Modernização, Mudança Cultural e Democracia. São Paulo: Francis, 2009.
Autor: José Carlos Sauer é Filósofo, Pesquisador em Comportamento Político e Diretor no Instituto Methodus. Nos últimos vinte e três anos, orientou campanhas eleitorais nos estados do Rio Grande do Sul, Acre, Roraima, Amazonas, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Alagoas e Paraná.