Quem ama o futebol entende que é um esporte feito, como a vida, de prazer e dor. A torcida se emociona, vibra, aclama e venera o time do coração como se fosse parte intrínseca e visceral dela mesma. Cada gol, cada vitória, cada título representa uma maneira para resgatar parte da nossa vida comum. Um momento em que cada torcedor se sente parte de um sucesso que pode ser compartilhado com familiares e amigos. Isso faz parte de uma fé que não temos medo de definir como religiosa. Pelo seu time do coração o torcedor se dispõe a fazer investimentos econômicos, como comprar camiseta, ingressos, pagar canais exclusivos, e emocionais, como vibrar, celebrar e chorar.
Agora uma pergunta surge: como podemos relacionar o futebol e a política?
Esta pergunta pode ser respondida com um exemplo real, que aconteceu na Itália, com a figura do Silvio Berlusconi. Não faremos uma biografia completa dele, porque seria um trabalho muito longo. Vamos somente analisar Berlusconi como um empreendedor que teve a capacidade de misturar a sua habilidade no campo financeiro; entender que um time de futebol poderia dar-lhe um consenso constante e devoto até na política, através de uma linguagem clara, familiar, específica e inovadora.
Silvio Berlusconi, em 1986, compra o AC Milan e consegue modificar a visão do jogo de futebol na Itália. O princípio dele era simples: “ganhar se divertindo”. Temos que lembrar que a cultura italiana do futebol, até sua chegada, baseava-se no jogo do “catenaccio”: um esquema tático extremamente defensivo onde o importante era não tomar gol; traduzido tecnicamente seria um 1-3-3-3. Este esquema obviamente era cauteloso e não deixava muito espaço para o espetáculo. Com Silvio Berlusconi, esta filosofia na Itália muda radicalmente, ele quer um futebol ofensivo, baseado em fazer muitos gols, ganhar e divertir os torcedores ao mesmo tempo. Deveria ser um jogo esteticamente belo e de sucesso. Ele consegue fazer isso comprando os melhores jogadores do planeta da época, e coloca um treinador visionário chamado Arrigo Sacchi. Assim, o Presidente Berlusconi se torna o “patron” com mais sucesso na história do AC Milan, ganhando 29 títulos em 31 anos.
No ano de 1993, toma uma decisão inédita: Berlusconi decide candidatar-se para “Presidente del Consiglio” da Itália, que é o equivalente ao cargo de Presidente da República no Brasil. Agora poderemos entender como e por que futebol e política foram relacionados.
Em primeiro lugar, ele cria um Partido (centro-direita) com um nome que é baseado exclusivamente na linguagem do futebol: Forza Itália. Este nome se torna um slogan marcante na cabeça de qualquer eleitor de direita ou esquerda, pois é a linguagem que eles entendem, com a qual se identificam! Sob esse slogan torcem para o seu time todos os dias e pela seleção italiana.
Então o lema Forza Itália se torna eficaz e de fácil identificação – que o eleitor de esquerda (oposição a Berlusconi) não pode deixar de gritar quando a seleção italiana joga. E aqui se estabelece a primeira vitória de Berlusconi contra seus adversários; eles se recusam a usar a expressão Forza Itália em apoio à sua Seleção e começam a usar Forza Azzurri. Paradoxalmente, Berlusconi consegue mudar até a maneira de torcer pela Seleção, forçando parte dos torcedores a não usar o slogan tradicional, mas sim o Forza Azzurri. Por isso, sua estratégia fica ainda mais impactante.
Em segundo lugar, ele muda a terminologia política e começa a adotar termos e definições do futebol para explicar conceitos básicos. O mais famoso é “discesa in campo”, que em português se traduz como “descida ao campo”. Ele emprega essa frase para dizer que ele quer fazer parte da vida política do país. Essa é uma terminologia que todos os potenciais eleitores entendem e com a qual se identificam, porque é algo que qualquer comentarista de futebol enuncia quando os jogadores entram no estádio para disputar o jogo.
Descer ao campo tem também significados diferentes: competir ou enfrentar um desafio com o seu time. Essa locução, se analisada a fundo, contém uma dupla interpretação política e esportiva: pode ser aplicada para concorrer a um cargo público ou para uma manifestação esportiva. Pode também significar, de um ponto de vista exclusivamente político, uma escolha de campo com valores e princípios bem definidos, com o qual o potencial eleitor se identifica de forma plena e absoluta.
Gostaríamos de evidenciar uma parte deste famoso discurso da candidatura do Berlusconi, feito em 1993:
“Se ho deciso di scendere in campo con un nuovo movimento, e se ora chiedo di scendere in campo anche a voi, a tutti voi – ora, subito, prima che sia troppo tardi – è perché sogno, a occhi bene aperti, una società libera, di donne e di uomini, dove non ci sia la paura, dove al posto dell’invidia sociale e dell’odio di classe stiano la generosità, la dedizione, la solidarietà, l’amore per il lavoro, la tolleranza e il rispetto per la vita”.
Tradução:
“Se decidi descer ao campo com um novo movimento, e agora eu peço que desçam vocês todos ao campo também – Agora! Logo! Antes que seja muito tarde – é porque eu sonho, com olhos bem abertos, uma sociedade livre, de mulheres e de homens, onde não vamos ter medo, onde no lugar da inveja social e do ódio de classes teremos generosidade, dedicação, solidariedade, amor pelo trabalho, tolerância e respeito pela vida”.
Podemos observar como ele não usa a palavra partido, mas “novo movimento”, para evidenciar a chegada de algo completamente inovador e diferente no panorama político da época. Além disso, as palavras usadas são simples, diretas e transmitem uma sensação de um perigo que está por vir (antes que seja muito tarde) se todos não vierem participar. Este sentimento de união, como na torcida pelo time do coração, esta sensação de que todos podem e devem descer ao campo, carrega uma representação de que todos podem e devem fazer parte do time dos times, o povo italiano.
Podemos entender como o Presidente Berlusconi foi um visionário, ele entendeu quanto o futebol poderia dar uma visibilidade a 360° e quanto uma mudança da linguagem política, direcionada ao futebol, poderia aumentar a empatia entre ele e o povo italiano. É importante destacar que todos entendem este tipo de linguagem, porque é algo que está presente nas falas do cotidiano de qualquer um. Todos sabem o que significa: “descer ao campo”, “titular”, “reserva”, “jogar”, “ganhar”, “perder”, “torcer”. Chegamos ao ponto em que não precisa sequer ser torcedor de um time para entender o significado de certas palavras, pois estão consolidadas em nossa cultura.
Neste caso específico, o presidente de um time de futebol é considerado alguém familiar, um homem que fala algo que eu entendo bem, que explica situações com uma linguagem que pode ser compreendida por qualquer pessoa, seja torcedora ou não.
Para reconhecer o significado de uma palavra, um ser humano precisa de uma representação mental – por exemplo, quando eu digo a palavra “cadeira”, o meu interlocutor terá uma representação mental da cadeira e entende do que eu estou falando. No nosso caso, a palavra “presidente” teve, no povo italiano, uma dupla representação: poderia ser aquela do presidente do AC Milan ou aquela do presidente del Consiglio. De qualquer forma, o potencial eleitor teve uma representação do futebol ou da política e as duas se misturaram em Berlusconi.
Como conclusão, sobre política e futebol na Itália, o Presidente Berlusconi se colocou em uma posição que o representou como gestor de sucesso e responsável e que iremos definir como “candidato transversal”.
A transversalidade entendida como um conceito político sistematizado em um conjunto de posições que unem, ao mesmo tempo, aspectos de políticas de esquerda com aquelas de direita. Este termo não deve ser confundido com uma mediação neutral para achar compromissos e nem com uma posição definida “centrismo”.
A ideia de candidato transversal é de uma pessoa que consiga ressignificar diferentes aspectos, tanto da esquerda quanto da direita, e conciliá-los em uma única ideologia, superando a tradicional divisão entre elas.
Alessandro Rizza é Italiano, mora no Brasil. Graduado em Filosofia pela Universitá degli Studi di Catania, na Itália. Mestre em Filosofia pela University College of Dublin, na Irlanda. Atualmente, é pesquisador em comportamento político e analista de pesquisas do Instituto Methodus.