Nos limites deste instrumento investigo a manifestação odiosa e seus significados na comunidade de falantes, buscando compreender suas características linguísticas, instrumentalização e materialização na produção discursiva do tema apresentada no filme A Caça, explorando assim sua performatividade discursiva.
O FILME
Lançado em 22 de março de 2013 no Brasil, com produção do diretor Thomas Vinterberg e roteiro de Tobias Lindholm e Thomas Vinterberg. O filme A Caça, estrelado por Mas Mikkelsen e realizado na Dinamarca, retrata a história de Lucas, um homem de meia idade, recém divorciado que vive longe de seu filho, Marcus (Lasse Fogelstrom), e que trabalha como monitor de uma pré-escola. Além de simpático e querido pelos amigos, o protagonista se torna a paixão platônica de Klara (Annika Wedderkopp) – filha de um de seus melhores amigos e aluna da creche. Após ser “rejeitada”, a pequena conta para a diretora da pré-escola que Lucas mostrou suas partes intimas a ela. Lucas passa a ter que se defender contra as acusações de pedofilia e ao ódio de toda a cidade[1].
Retratado resumidamente na crítica, o filme A Caça, parece mais um daqueles melodramas produzidos pela Netflix, porém sua narrativa vai muito além. Lucas é um homem honrado, pai de um menino e está reconstruindo sua vida após um divórcio conturbado. De maneira singela e delicada a película revela sua personalidade paternal, as relações de amizade e seu reencontro com o filho, que assim como ele está resgatando a relação. Acontece que diante desta nova realidade, de sua casa vazia e sem identidade, Lucas encontra apoio na rotina familiar do seu melhor amigo, pai de Klara.
Klara é a filha mais nova de uma família de três filhos e nesta relação com os irmãos, que estão em idade adolescente, vê imagens pornográficas mostradas por um deles. Ainda, os pais de Klara não dedicam toda a atenção que a menina solicita, esquecendo de buscá-la na escola ou de auxiliá-la nos deveres. Cabe a Lucas, por sua dignidade e relação com a família, auxiliar Klara, levando-a de volta a sua casa em dias de esquecimento e dando atenção a sua rotina. Os acontecimentos após a revelação de Klara (que é fruto de sua fantasia), serão as manifestações a serem investigadas neste artigo.
Após os acontecimentos, Lucas foi imediatamente julgado por sua comunidade, progressivamente suas relações de afeto e intimidade com a família de Klara foram colocadas em questão, ainda, outros pais, após serem informados dos acontecimentos, passam a relatar sintomas de abuso em seus filhos, aumentando dramaticamente a proporção desta tragédia. Lucas nem mesmo se defende, em respeito a menina e a família do amigo, cala-se. Seu silêncio produz ainda mais dúvidas, reduzindo drasticamente sua rede de apoio e convívio no seio desta pequena comunidade. Agora, isolado e odiado por todos, caberá a ele lutar pelo resgate de sua dignidade na justiça, onde será absolvido da acusação, porém, permanecerá condenado e odiado eternamente entre os seus.
O DISCURSO DE ÓDIO
Em sua obra Judith Butler, examina manifestações de ódio, aprofundando o conceito de performatividade[1] aplicada ao discurso e possibilitando que se investigue o ódio em qualquer tempo. O discurso de ódio revela uma vulnerabilidade prévia à linguagem, uma vulnerabilidade que temos em virtude de sermos seres interpelados, que dependem do chamamento do Outro para existir (BUTLER, 2021). Lucas vive a ausência do chamamento do Outro, pois, o enunciado do ódio também manifesta-se no silêncio da relação com o Outro.
“Aqueles que odeiam têm de ser seguros, caso contrário, não falariam, agrediriam ou matariam desta forma. Caso contrário, não poderiam menosprezar, humilhar, atacar os outros assim. Eles têm de estar seguros” (EMCKE, 2020, p.13). Qual é a fonte desta segurança? A película em análise revela que a fala de Klara é a manifestação inconteste da acusação. Aos adultos envolvidos na tragédia não houve o interesse na investigação sem o pré-julgamento ou no aprofundamento dos acontecimentos, a estes, bastou a crença de que crianças não mentem. A cólera é descarregada sobre os desamparados que chamam a atenção, escrevem Max Horkheimer e Theodor Amadorno em “Dialética do esclarecimento“ (EMCKE, 2020).
Segue-se a constituição do ambiente odioso, sua dispersão iniciou-se na certeza precária, revelou-se no silêncio duvidoso e agora será enunciado. “A linguagem opressiva não é um substituto da experiência da violência, ela coloca em ação sua própria forma de violência. A linguagem permanece viva quando se recusa a “conter” ou “capturar” os acontecimentos e as vidas que descreve” (BUTLER, 2021, p. 23).
Nosso protagonista apercebe a existência do ódio, manifestado por aqueles que o desconhecem e que são estranhos a todo acontecimento. São os multiplicadores da violência em ação, que alimentam o estigma do ódio, agora preenchido com novo significado anunciando a existência de um novo sujeito.
Para o autor Victor Klemperer em sua obra “A linguagem do Terceiro Reich-LTI”, o uso das palavras durante a Segunda Guerra Mundial, inseria um contexto de normalidade que se estendia ao comportamento das pessoas. “Normal era boicotar a loja de judeus, normal era votar em lista parlamentar única, normal era aprovar a política econômica de Hitler” (KLEMPERER, 2009, p. 18). A normalidade a qual Klemperer se refere é a locomotiva do ódio, diante dela, inexistem manifestações de protesto ou defesa, somente o silêncio injurioso. Butler (2021, p.86) questiona:
Se a performatividade requer o poder de efetuar ou de colocar em ação o que é nomeado, então o “indivíduo” deterá tal poder, e como esse poder será concebido? Dentro deste contexto, como podemos explicar a palavra injuriosa, a palavra que não apenas nomeia um sujeito social, mas que constrói esse sujeito na nomeação, e o constrói por meio de uma interpelação violadora?
A injuria é a usina produtora do ódio, sua nascente. Não há fim ao ódio enunciado, que no encontro com o sujeito objetificado deixa sua origem, instalando-se em sua nova morada, um ser agora odiado. “Uma das primeiras formas de injúria linguística que se aprende é ser chamado de algo” (BUTLER, 2021, p.12). É a prática situacional o meio pelo qual o discurso produz os efeitos que nomeia.
A SIGNIFICAÇÃO
Para Klemperer (2009), a todo o momento se expressa o temor diante do ser pensante e o ódio contra o pensar. Serão as manifestações nomeadas, preenchidas de significado e transitivamente destinadas ao Outro que ofendem?
Husserl (2015, p.30) observa que sempre poderemos falar diretamente de um apontar:
Quando refletimos sobre a relação entre a expressão e significação e, para esse fim, desmembramos a vivência complexa e, ao mesmo tempo, intimamente unitária da expressão plena de sentido nos dois fatores da palavra e do sentido, então aí, a própria palavra aparece-nos como em si mesma indiferente, o sentido, porém, como o que é “tido em vista” com a palavra, como o que é visado por meio desse signo; a expressão parece, assim, dirigir o interesse de si própria para o sentido, apontar para este.
O sentido preenche a expressão de significado. Palavras odiosas, quando nomeadas ao Outro, apontadas por assim dizer, transmitem continuadamente o ódio. Sem que sejam interrompidas, permanecerão ocupando o espaço e ressignificando o sentido do Outro, objeto agora do ódio enunciado. A performatividade do ódio ressignificou Lucas, suas relações e seu futuro. Isolado, afasta-se da comunidade para reencontrar sua existência sem o julgamento velado e odioso do qual não há fuga. O ato doador de sentido e ato preenchedor do sentido, nesse sentido Husserl (2015, p. 32), aponta que
Se tomarmos por base esta diferença fundamental entre intenção de significação intuitivamente vazia e preenchida, então também será necessário distinguir dois tipos de atos ou séries de atos: de um lado aqueles que são essenciais, para a expressão, porquanto ela queira ser ainda em geral, uma expressão, isto é, um som uma palavra animada de sentido. A estes atos chamamos atos que conferem a significação, ou também¸ intenções de significação. Por outro lado, os atos que são certamente extras essenciais para a expressão enquanto tal, mas que estão com ela na relação logicamente fundamental de que preenchem (confirmam, reforçam, ilustram) a sua intenção de significação. Chamamos-lhes atos que preenchem a significação.
A mentira anunciada, foi preenchida com significados coletivos. Apesar de Klara inocentar Lucas, a sua nova verdade não promoverá a superação necessária para a ressignificação de seu primeiro ato. A comunidade agora está julgando pela inclinação de suas convicções primeiras e, como solipsistas, encontram-se em um mundo que é somente deles. Permanecendo aí, condenarão Lucas para a eternidade. A eficiência do termo injurioso entra agora em comunhão com a comunidade, reforçando suas decisões finais.
Quando o termo injurioso fere (e devo enfatizar que ele fere), ele opera exatamente por meio da acumulação e da dissimulação de sua força. O falante que enuncia a ofensa racial (homofóbica, misógina) está, portanto, citando essa ofensa, entrando em comunhão linguística com um histórico de falantes. É provável, então, que seja precisamente a iterabilidade por meio da qual um performativo coloca em ação sua injúria que estabelece uma dificuldade permanente de identificar as responsabilidades finais por essa injúria em um sujeito singular e seu ato (Butler, 2021, p.90) .
Lucas ficará um ano distante, antes da caçada final.
CONCLUSÃO
Aqui, assim como Husserl apresenta, deveríamos colocar o mundo de Lucas entre parênteses, realizando uma Epoché dos acontecimentos.
Com a Epoché, diz Husserl, “pomos fora de ação a tese geral própria da atitude natural e colocamos entre parênteses tudo o que ela compreende; com isso, a totalidade do mundo natural que está sempre “aqui para nós” ao alcance da mão e que continuará a permanecer como realidade para a consciência, ainda que nos agrade colocá-la entre parênteses. Ao fazê-lo, como é de minha plena liberdade fazer, não nego o mundo, como se fosse um sofista, não ponho em dúvida o seu existir, como se fosse um cético, mas exerço a Epoché Fenomenológica, que me veta absolutamente qualquer juízo sobre o existente espaço-temporal” (ABBAGNANO, 2018, p.395).
A suspensão do juízo, e a interrupção da performatividade do ódio destinado a Lucas, são as ferramentas utilizadas por aqueles que o apoiaram. De posse dos valores anteriores de Lucas, este pequeno grupo de amigos o auxiliará, tanto na sua defesa, quanto na tentativa de resgate da sua existência coletiva.
Nosso roteiro, segue agora aos atos finais. A cultura local, tem entre os homens a prática da caça de cervos (motivo para o nome do filme). Onde, em uma cerimônia os jovens são iniciados na prática da caça, constituindo assim sua “participação e aceitação” na comunidade. Após um ano, é chegada a hora de Marcus, filho de Lucas, emancipar-se, participando da cerimônia no dia de seu aniversário. Reunindo a todos para celebrar, e de certo modo resgatarem-se do enorme trauma, são realizadas as festividades que terminam em uma caçada. Após observar seu filho orgulhosamente, Lucas permanece imóvel, pensativo. Há uma atmosfera de reconciliação, de perdão.
Um tiro.
Um tiro em direção a árvore onde Lucas se apoia suspende suas esperanças. Não será necessário um segundo tiro. Este será sempre um aviso, uma lembrança da permanência do ódio, do julgamento, do não esquecimento.
Fim do filme.
A performatividade transita entre a vingança e o perdão. Instalada a injuria, será necessária sua permanente vigilância, pois, somente com cuidado é possível que a verdade volte a frutificar. A linguagem nos define como seres sociais, e a ilocução injuriosa, potencialmente transformará a todos em um Lucas.
Autor – José Carlos Sauer é Filósofo, Pesquisador em Comportamento Político e Diretor no Instituto Methodus. Nos últimos vinte e três anos, orientou campanhas eleitorais nos estados do Rio Grande do Sul, Acre, Roraima, Amazonas, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Alagoas e Paraná.
[1] Performatividade deve ser entendida não como um “ato” singular ou deliberativo, mas como a prática reiterativa e citacional por meio da qual o discurso produz os efeitos daquilo que nomeia. BUTLER, Judith. Corpos que importam. Crocodilo, São Paulo. Novembro, 2019.
REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Discurso de ódio, UNESP. São Paulo – SP, 2021.
BUTLER, Judith. Corpos que importam. CROCODILO, São Paulo – SP, 2019.
EMCKE, Carolin. Contra o ódio. ÂYINÉ. Belo Horizonte, 2020.
KLEMPERER, Victor. LTI – A Linguagem do Terceiro Reich. CONTRAPONTO. Rio de Janeiro – RJ, 2009.
HUSSERL, Edmund. Investigações Lógicas.v.2. FORENSE UNIVERSITÁRIA. Rio de Janeiro – RJ, 2015.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. MARTINSFONTES. São Paulo – SP, 2018.
Filme – A CAÇA. Lançamento 22 março 2013. Diretor Thomas Vinterberg.