Ao longo da história, a formação e o crescimento das cidades não estiveram unicamente lastreados em suas características territoriais e demográficas, mas também, nas complexidades dos seus problemas locais e regionais. A complexidade envolve, principalmente, problemas sociais básicos como a necessidade de assistência social, saúde e educação. Além disso, existem certos tipos de prestações de serviços, que servem ao mesmo tempo como elementos fundamentais, para o desenvolvimento econômico e para a efetivação de direitos sociais, como é o caso do transporte público, prestação de serviço que raramente contenta a sociedade brasileira.
Historicamente, o transporte das pessoas tem sido objeto de teorias científicas, pesquisas acadêmicas e de disputas políticas. Nestes debates, o que é comum em todos esses casos são os posicionamentos de defesa do transporte individual privado, especialmente por automóveis, ou de defesa do transporte coletivo, por trem ou ônibus. Na pauta, o que está em jogo é a garantia de manutenção de um importante recurso econômico, que é fundamental numa cidade: o tempo de seus habitantes.
No objeto de estudo das ciências econômicas, há inclusive uma área específica dentro do campo do desenvolvimento regional, chamada economia dos transportes, para analisar os custos de deslocamento, onde o tempo das pessoas pode ser também quantificado e considerado como um custo.
Neste sentido, ao se analisar o transporte público coletivo no Brasil, especialmente, por ônibus urbano, verifica-se que tradicionalmente e culturalmente, este tipo de transporte acabou sendo preterido pelo transporte individual de automóveis, devido à fatores como segurança, conforto e tempo, principalmente diante de atrasos dos ônibus nos grandes centros urbanos, além é claro, da população considerar a tarifa muito cara, em relação à qualidade do serviço prestado pelas empresas. Esses elementos, fizeram com que aumentasse o número da frota de automóveis e se reduzisse o número de passageiros em ônibus urbanos.
A ampliação do uso de automóveis para o transporte urbano, se acentuou, principalmente após a pandemia de Covid-19, combinada com o atendimento de larga escala, por parte dos serviços privados de transporte por aplicativos. Depois da pandemia de Covid-19, o número de viagens de transporte urbano por ônibus caiu mais de 24%, o que representa uma redução em torno de oito milhões de viagens, segundo o Anuário 2022-2023, da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). Até o ano de 2019, período anterior à pandemia, eram realizados no Brasil em torno de trinta e três milhões de viagens de passageiros pagantes por dia, caindo para vinte e cinco milhões de viagens em 2022.
Tais dados confirmam, que a população encontrou no transporte individual, a alternativa para substituição de viagens de ônibus. Porém, mais carros significam mais congestionamentos, mais necessidade de espaços nas cidades, para o uso de estacionamentos e por conseguinte, mais espaço urbano, o que leva à população para territórios periféricos, aumentando o custo público e o custo de vida das cidades. O uso de mais automóveis também gera o aumento no consumo de combustíveis fósseis, e consequentemente, mais poluição, com a liberação de CO2 na atmosfera.
A combinação, entre a redução do número de passageiros no transporte coletivo urbano e o aumento do uso do automóvel, não só coloca o modelo de transporte público em risco, como também, cria um impacto ambiental, que vai contra os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização da Nações Unidas, no qual o Brasil é signatário. Neste sentido, muitas cidades brasileiras estão aderindo a uma alternativa, que impacta não só a sobrevivência de transporte por ônibus nos municípios, mas também, a redução de emissão de CO2 na atmosfera; o desenvolvimento econômico; e a efetividade ao direito do transporte público, por meio da Tarifa Zero, para viagens de ônibus.
Considerada por muitos como a revolução do transporte público, os programas municipais de Tarifa Zero, garantem que os cidadãos não paguem mais a tarifa de passagem de ônibus. Isto porque, os municípios que adotam o Programa, tem financiado a isenção de tarifa para todos os usuários, gerando aumento na demanda pelo uso do ônibus, fazendo com que o dinheiro que seria gasto nas tarifas, retornem para a economia local, gerando renda e aumentando a receita de impostos dos municípios, para o financiamento de politicas públicas municipais.
Dessa forma, andar de ônibus nas cidades que adotam a Tarifa Zero, passou a ser uma política pública que garante a gratuidade de transporte coletivo à população, com externalidades positivas à toda economia. Atualmente, são cento e três municípios que possuem a Tarifa Zero: i) em oitenta e oito municípios, a gratuidade abrange todo o sistema durante todos os dias da semana; ii) em dez municípios, a gratuidade abrange todo o sistema em dias específicos da semana; e iii) em cinco cidades, a gratuidade abrange parcialmente o sistema, como por exemplo, no final de semana.
Da totalidade dos municípios que atualmente adotam a Tarifa Zero, sessenta e sete possuem até cinquenta mil habitantes; quinze municípios, de cinquenta a cem mil habitantes; onze municípios, de cem a duzentos mil habitantes; e apenas dez municípios, acima de duzentos mil habitantes. Essas informações deixam claro, que a adoção do Tarifa Zero é um desafio mais significativo para os maiores municípios, especialmente, as capitais e as conurbações em regiões metropolitanas.
Municípios como São Paulo, Cuiabá, Fortaleza e Palmas, já ensaiam de alguma forma adotar a medida. A cidade de São Paulo, iniciou em 2023 um modelo preliminar, por meio da experiência da gratuidade de ônibus aos domingos e em alguns feriados. Atualmente, o custo do transporte público da capital paulista é de aproximadamente doze bilhões de reais, com repasses da Prefeitura às empresas, em valores que chegam próximos dos cinco bilhões de reais. O saldo restante é financiado pela tarifa paga pelos usuários.
Neste sentido, o grande desafio dos municípios, especialmente os maiores, é a fonte de recursos para o financiamento da Tarifa Zero. Para tanto, os municípios têm encontrado diferentes alternativas para o financiamento da gratuidade de passagens de ônibus.
Dentre as alternativas, estão o uso de recursos livres dos municípios, ou seja, recursos de origem de livre aplicação por parte dos prefeitos municipais, como também, fundos específicos para o transporte público, formados por recursos oriundos dos vales-transportes pagos pelas empresas. Ao invés das empresas pagarem o vale-transporte para cada trabalhador, elas transferem os recursos para o fundo, que financia o transporte público à toda população. Há também municípios, com fundos subsidiados por royalties do petróleo, bem como, de receitas de multas e da publicidade dos ônibus.
Uma alternativa robusta, para o financiamento do Tarifa Zero vem da regulamentação do mercado de carbono, que aguarda votação no Senado Federal, após aprovação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei (PL) n° 2148/15, que poderá gerar centena de bilhões já em 2024. Esta é uma alternativa plausível para todos os municípios brasileiros, pois tramita no Congresso Nacional, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° 25/2023, que determina a criação de um sistema de transporte público, universal e gratuito à toda população.
A PEC, mais do que determinar a Tarifa Zero nos municípios brasileiros, também trará para o debate a necessidade de mudanças nos tipos de ônibus utilizados atualmente, para o uso de veículos movidos por combustíveis limpos, como é o caso daqueles com motores elétricos. Isso também exigiria, linhas de financiamento para obras que garantissem aos municípios, adaptação para esses veículos, aproveitando também, a redução dos impactos das mudanças climáticas.
Ainda, a Tarifa Zero não deve ficar restrita às concessões tradicionais de transporte coletivo nas cidades. Existem alternativas inovadoras como as novas empresas de ônibus por aplicativos, que podem trazer modernidade e inovação sistemática, como soluções de transporte urbano nos municípios brasileiros.
De qualquer forma, a Tarifa Zero é uma importante alternativa para a manutenção do transporte público, e que deve ser debatida com a sociedade. E não há melhor período para isso, do que um ano eleitoral. É uma pauta importante demais, para não ser discutida nas próximas eleições.
Mario de Lima é doutor em economia. Como economista, professor, consultor e escritor atua nas áreas de gestão pública, políticas públicas, finanças públicas, educação, governança e desenvolvimento regional. Exerceu diversos cargos como assessor, conselheiro e gestor na administração pública brasileira.