Eu ainda recordo de bons momentos da minha infância sentado na frente da televisão, assistindo ao Jornal Nacional com meu avô. Compreendia muito pouco sobre a maioria dos temas — a editoria de esportes, por motivos óbvios, era a minha “praia” — , mas aguardava o resumo que ele carinhosamente fazia das principais matérias para mim. E, em muitos casos, onde a pauta era alguma evolução tecnológica, ou político-social em países “desenvolvidos”, ele finalizava seu comentário contemplando que “o Brasil podia ser evoluído assim”. Infelizmente, meu avô faleceu no começo dos anos 2000, sem ver o Brasil evoluído como sonhava.
Passaram-se quase 30 anos, e sabemos que não estamos evoluídos como determinados países do Norte Global. Houve, inclusive, momentos em que nos questionamos se havíamos involuído. O que se viu (e vê) em noticiários demonstra que não sanamos problemas crassos da formação socioeconômica brasileira. E, ao passo que uma parcela de uma elite político-social discute temas que são tendências globais, velhos problemas continuam castigando a maioria dos brasileiros. Em frases “inocentes” que resumem com exatidão como tomamos o caminho errado da história.
“É coisa de preto, né?”
Foi a frase proferida por Camilo Cristófaro em sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Aplicativos da Câmara Municipal de São Paulo. Com autoria desconhecida, essa frase nefasta é reproduzida em profusão no cotidiano dos racistas. O azar do agora ex-vereador foi ter uma conversa telefônica inadvertidamente captada pelo sistema de som da casa legislativa paulistana, resultando na cassação de seu mandato. O fato ocorreu em 3 de maio de 2022; a cassação, somente em 19 de setembro de 2023.
E por uma triste coincidência, o ato racista ocorreu dias antes das comemorações dos 134 anos da abolição da escravatura. Inclusive, o que assistimos atualmente tem bases sólidas na maneira tardia como o Brasil combateu a escravidão. Em 1888, quando a Princesa Isabel sancionou a Lei Áurea, éramos a única nação do continente onde a propriedade de escravos ainda era permitida. O Haiti havia abolido a escravidão (1791), mas a primeira Constituição Brasileira (1824) nem se referiu ao problema de forma explicita. É absurdo imaginar que nessa mesma época, onde milhões de homens eram tratados como mercadoria no Brasil, o alemão Carl von Linde inventava a geladeira, o canadense Graham Bell fazia teste com o telefone, e homens livres fundaram clubes de futebol na Inglaterra.
O Brasil republicano demorou muito tempo para tratar o racismo com a seriedade que o tema demanda. Mais de 100 anos após o fim da escravidão, o ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, comentou que Pelé, ministro dos Esportes, e o asfalto eram “dois pretos admirados por todo o Brasil”. Crise que se resolveu de forma breve: o ministro pediu desculpas a Pelé, e se manteve no cargo sem maiores problemas. Em 2018, o deputado federal Bolsonaro afirmou, após uma suposta visita a quilombolas, que eles não faziam nada, e que possivelmente não seriam capazes de procriar, pois o “mais leve lá pesava sete arrobas”. Em 2020, como presidente, voltou a se referir ao peso de uma pessoa negra com uso de arrobas, como se referisse ao comércio de carne bovina in natura. O racismo, que aqui estava quando nos tornamos uma nação, continua institucionalizado nas piores práticas cotidianas. Inclusive entre os que deveriam fomentar a extinção desse mal.
“Não contratem mais aquela gente lá de cima”
O vereador Sandro Fantinel, de Caxias do Sul, usou a frase para comentar sobre o caso dos mais de 200 trabalhadores baianos resgatados em situação análoga à escravidão em uma vinícola da cidade. O mais absurdo foi que Fantinel fez questão de subir no púlpito da casa legislativa para cometer o ato racista, não foi pego inadvertidamente pelo sistema de som como o vereador paulistano. O uso do “gente lá de cima” não é em vão, é uma maneira de tirar a humanidade de vítimas de um dos crimes mais cruéis que há. Inclusive, seria crime em 2023, assim como em 1889. É coisificar pessoas que, para um racista ou xenófobo, não merece ser tratada como um igual. O fato ocorreu em 28 de fevereiro de 2023 e, em 16 de maio de 2023, os vereadores de Caxias do Sul vergonhosamente decidiram que não houve ato de decoro que legitimasse o pedido de cassação.
Fantinel, em sua argumentação racista, comentou que os argentinos seriam melhores opções para as vinícolas gaúchas, pois “agradecem ao patrão pelo serviço prestado e pelo dinheiro recebido”. O vereador Toninho Garcia, de Apucarana (PR), somou-se ao discurso do parlamentar gaúcho ao afirmar que o nordestino “não gosta muito de trabalhar”. Coincidentemente, ou não, o ato racista — ocorrido em plenário, no 14 de agosto de 2023 — foi com microfone sabidamente aberto. O preconceito contra os nordestinos não é uma novidade, mas parece que se tornou (ou voltou a se tornar) desavergonhado desde as eleições de 2014. O histórico de polarização entre eleitores nordestinos e eleitores sudestinos/sulistas só se intensificou desde que Dilma Rousseff derrotou Aécio Neves numa eleição acirrada. Houve quem propusesse a separação do Nordeste do resto do Brasil, e mesmo a construção de um muralha para evitar o fluxo migratório dos nordestinos, como uma Muralha de Adriano que protegeria o “Brasil que dá certo” dos bárbaros e coronelistas nordestinos.
O desenvolvimento socioeconômico brasileiro, assim como de muitos países do Sul Global, resultou em desigualdades que talvez nunca se reparem. O que não podemos aceitar é que isso se torne uma pecha de quem nasceu, se criou ou ainda reside em regiões historicamente menos desenvolvidas. Pois, baianos, pernambucanos ou sergipanos são tão brasileiros quanto gaúchos, paranaenses ou goianos; e todos têm a obrigação de sentarem à mesa para debater um desenvolvimento nacional que contemple desenvolvimento socioeconômico com correção de disparidades regionais. E, antes de tudo, com respeito às diversas culturas que fazem do Brasil um país único.
“Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”
Em 6 de março de 2010, o goleiro do Flamengo, Bruno Fernandes, usou essa falácia para defender uma confusão protagonizada por Adriano Imperador com a ex-companheira Joana Machado na Favela da Chatuba. Bruno, que teve seu carro afetado na confusão, contepotizou a situação questionando “quem nunca brigou ou até saiu na mão com a mulher”. Futuramente, ele seria condenado pela morte da modelo Eliza Samúdio, ex-parceira e mãe de seu filho, Bruninho. O ex-goleiro não é exceção, como mostrou a pesquisa sobre tolerância social à violência contra as mulheres (Ipea 2014), onde 82% dos entrevistados afirmaram que concordam com a frase.
Levantamento do G1, com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal, mostra que uma mulher foi assassinada a cada 6 horas, em média, em 2022. O motivo, absurdo, seria por serem mulheres, o feminicídio. O Brasil é o 5º país que mais mata mulheres de forma violenta no mundo, indica o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. É também o país onde duas mulheres são estupradas a cada minuto, sendo que muitas nem mesmo são mulheres, pois a maioria são menores de idade. É um martírio ser mulher no Brasil, e sempre foi: as Ordenações Filipinas (1603), vigentes no período colonial, previam a pena de morte para as adúlteras; o Código Civil de 1916 considerou casadas como incapazes para trabalhar fora do lar, precisando da aprovação dos esposos; e somente com o Código Eleitoral de 1932 elas passaram a ter direito ao voto.
O Estado brasileiro falha miseravelmente em cuidar das brasileiras. Houve avanços como a Lei Maria da Penha ou a Lei do Feminicídio, mas infelizmente continuamos contabilizando vítimas. O problema não se esconde em casa, ganhando as ruas e entrando nos espaços de poder: mesmo sendo 51% da população brasileira, somente 12% das Prefeituras são ocupadas por mulheres. E, mesmo em espaços de proposição de políticas públicas para combater esse mal, casos documentados de assédio às mulheres acontece, como o ocorrido com Carla Ayres, na Câmara de Vereadores de Florianópolis, e Isa Penna, na Assembleia Legislativa de São Paulo. O direito das mulheres de viverem, com corpos e vontades sendo respeitados, infelizmente sucumbe ao direito que muitos homens creem ter de tratá-las como cidadãs de uma classe secundária.
Pois é, vô, o mundo continua evoluindo muito, mas ainda sofrendo com velhos problemas: temos Inteligência Artificial e Internet das coisas, mas ainda há muita gente passando fome ou vivendo como escravos. Infelizmente estamos patinando em nosso processo civilizatório, e ainda não somos tão evoluídos assim como o senhor sonhou. É claro que tem muita gente boa trabalhando para colocar o Brasil nos anos 2000. Mesmo que outros queriam o retorno a 1964, 1888, ou mesmo 1822.
Paulo Petitinga é estrategista político, mestre em Comunicação e Opinião Pública pela Universidade Católica de Brasília, e pesquisador-convidado do Labô – Laboratório de Política, Comportamento e Mídia, da PUC-SP.
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