Na minha infância, que se desenrolou nos anos 80, eu costumava observar minhas amiguinhas se divertindo com várias bonecas, sendo a Barbie uma das mais icônicas. Elas passavam horas trocando suas roupas, penteando seus cabelos e conversando com elas. Enquanto isso, eu me dedicava às minhas brincadeiras com robôs e carrinhos, fazendo “broom broom”. Eram momentos de inocente diversão, onde cada um encontrava satisfação em seus próprios objetos de entretenimento. Às vezes, até fazíamos trocas entre nossos brinquedos. Ao final do dia, todos nós guardávamos os nossos em seus devidos lugares, evitando assim qualquer incômodo para nossos pais.
Lembro-me vividamente de uma das minhas amiguinhas, que tratava sua Barbie como se fosse uma filha, projetando nela seus sonhos e aspirações. Era como se conferisse à Barbie uma espécie de humanização, transformando-a no símbolo máximo de uma existência perfeita.
Acredito que as mães das minhas amigas, em algum momento de suas próprias infâncias, também tenham brincado com bonecas. Talvez não tenham sido Barbies, mas o princípio básico de brincar e imaginar certamente foi semelhante. Até recentemente, brincar com bonecas, incluindo a Barbie, era uma atividade natural, leve e despretensiosa. Entretanto, alguns meses atrás, um filme da Barbie foi lançado. É relevante mencionar que não se tratava de uma animação, mas sim de um filme com atores reais. Desde então, tenho acompanhado com interesse como esse evento despertou um interesse fora do comum em várias esferas.
No Brasil, por exemplo, o filme estabeleceu recordes, tornando-se a maior pré-venda da Warner Bros em nosso país. Em escala global, o lançamento do filme tem gerado debates sobre diversos temas interessantes. Um desses temas que me chamou a atenção foi a polarização política.
No entanto, como isso aconteceu? Como uma história aparentemente simples, envolvendo uma boneca, se transformou em um tópico de relevância política internacional?
Grupos com valores conservadores rotularam o filme como uma forma de feminismo que supostamente atacava os homens de forma generalizada. Eles argumentaram que o personagem Ken, que provavelmente iriam mencionar, foi retratado de maneira negativa ou desvalorizada no filme. Essa interpretação provocou debates acalorados sobre questões de gênero, igualdade e representação na mídia. É fascinante como um filme pode se tornar um ponto de partida para discussões profundas e importantes sobre a sociedade e a política.
Por outro lado, o filme da Barbie está sendo amplamente abraçado, quase que universalmente, se não como uma parábola feminista, pelo menos como uma diversão incrível. Mais surpreendente ainda é o que o filme fez pela própria Barbie. Gerações anteriores criticavam os padrões de beleza irrealistas da boneca também como sinônimo de uma feminilidade antiquada. Assim como “burra”, Barbie há muito tempo foi uma forma de descrever uma mulher que se concentra excessivamente em sua aparência, ignorando outros aspectos de sua personalidade ou habilidades. No entanto, com o lançamento do filme, a própria Barbie foi revalorizada em relação a algumas das críticas que enfrentou no passado. No cenário pós-filme da Barbie dirigido por Gerwig, assistimos a uma mudança significativa no discurso. Agora, a Barbie emerge como sinônimo de empoderamento! Uma série de detalhes intrigantes veio à tona na mídia em relação ao filme: notamos que a Barbie existiu muito antes do surgimento do Ken; ela desempenhou papéis como executiva de negócios, astronauta e até mesmo presidente, desafiando normas e estereótipos de gênero. Além disso, embora tenha havido uma Barbie grávida, oficialmente nunca a vimos como mãe. As preocupações com os padrões de beleza são abordadas nas reavaliações da boneca, mas também é crucial destacar os esforços da Mattel em diversificar a representação das bonecas, um reflexo das mudanças culturais e políticas em curso.
Na minha perspectiva, observo uma significativa evolução na percepção desta boneca. Anteriormente, as crianças tinham o costume de atribuir características humanas à Barbie, uma boneca de plástico, projetando seus próprios sonhos nela. Com a representação humanizada da Barbie no filme, estamos testemunhando uma espécie de plastificação da identidade humana. As pessoas não parecem mais aceitar a si mesmas como realmente são; em vez disso, buscam uma ilusão passageira, muitas vezes tentando imitar uma figura de plástico ao usar roupas cor-de-rosa e perseguir padrões irreais de perfeição.
Ao final do dia, a questão de se a Barbie (não a do filme, mas a própria boneca) é conservadora ou liberal parece não ter uma resposta definitiva. Do meu ponto de vista, ela parece se enquadrar claramente em ambos os rótulos e, ao mesmo tempo, em nenhum deles. A Barbie, como uma boneca de plástico, não assume uma ideologia feminista nem demonstra instinto maternal. Ela não se opõe à figura do Ken nem à ideia de formar uma família. Em última análise, a Barbie é simplesmente uma criação de plástico concebida para gerar bilhões ao longo das inúmeras gerações que a adotaram. Ela age como um reflexo das diferentes épocas em que as meninas brincaram com ela, desde os anos 60 até os dias de hoje, refletindo as mudanças nos valores culturais e morais, assim como a forma como aqueles que brincam com ela se identificam ao longo do tempo. A Barbie é, em última análise, um produto da cultura e da sociedade em constante evolução. No entanto, é importante reconhecê-la pelo que é: uma boneca de plástico.
Alessandro Rizza é Italiano, mora no Brasil. Graduado em Filosofia pela Universitá degli Studi di Catania, na Itália. Mestre em Filosofia pela University College of Dublin, na Irlanda. Atualmente, é pesquisador em comportamento político e analista de pesquisas do Instituto Methodus.
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