A proferida polarização da política brasileira ocupa o espaço crítico dos reais problemas que o Brasil precisa solucionar, alimentando a decepção dos eleitores e debilitando um dos principais pilares da democracia que é a participação popular.
O espaço para o dissenso e participação encontra-se vigiado, reduzindo drasticamente os locais que nos constituem coletivamente. O debate na igreja, famílias, escolas, no barzinho da esquina e no futebol com amigos é agora campo minado com potencial explosivo a cada opinião e posição assumida. Ao fugir do constrangimento, optamos pelo diálogo frívolo em detrimento do compartilhamento seletivo que reforça exclusivamente nossas convicções.
É possível inferir que grande parte dos brasileiros esteja vivendo neste contexto? Acuados pela histeria de pequenos grupos que impedem o diálogo e impõem o silêncio, somos quase que obrigados a nos conter com menos, e por vezes muito menos, do que poderíamos realmente alcançar em nossa democracia.
Isso é o que chamamos de polaridade (polarização), onde princípios opostos se chocam extinguindo o diálogo e impedindo avanços. O establishment político nos faz crer ser esse o principal problema da nossa jovem democracia. Mas afinal, somos verdadeiramente reféns dessa polarização?
Como observa Innerarity “O melhor é partir de uma constatação muito libertadora: a política é uma atividade limitada, medíocre e frustrante porque a vida também é assim, limitada, medíocre e frustrante, o que não nos impede em ambos os casos de tentar fazer o melhor.” (Daniel Innerarity – A política em tempos de indignação, 2017)
A dialética da polarização nos cerca, criando a percepção de vivermos em um país dividido entre “bolsonaristas” e “lulistas”. No entanto, é preciso questionar essa narrativa e refutar esse problema aparente. Estamos realmente envoltos em uma polarização política ou somente toleramos a manifestação histérica dos pequenos grupos políticos?
Para Bobbio a distribuição de poder dos regimes democráticos cria o fenômeno do poder difuso, onde “a fragmentação cria a concorrência entre poderes e termina por criar um conflito entre os próprios sujeitos que deveriam resolver os conflitos, uma espécie de conflito elevado a segunda potência, exasperando também a normal conflitualidade social.” (Norberto Bobbio – Liberalismo e Democracia, 2017).
O histórico das eleições presidenciais revela dados intrigantes que podem oferecer insights sobre este tema. Nosso sistema eleitoral divulga os resultados das eleições considerando apenas os votos válidos, o que significa que o vencedor é aquele que conquistou pelo menos 50% dos votos válidos mais um, formando assim a maioria.
Ao analisarmos os resultados das votações sobre o total de eleitores aptos, a cada eleição, encontramos o percentual de eleitores que efetivamente elegeram sucessivos presidentes de 1998 a 2022 chegando a uma média de 40% dos votos aptos.
Contrariamente ao que se costuma proclamar a eleição presidencial não é resultado da escolha da maioria dos eleitores brasileiros, mas sim de uma minoria que proporcionalmente ao crescimento do número de eleitores aptos, vem encolhendo a cada eleição. Gráf. 1
Em 1998, tínhamos cento e seis milhões de eleitores aptos a votar, número que aumentou para cento e cinquenta e seis milhões em 2022, representando um crescimento da base nacional de eleitores de 47,5%, ou seja, um acréscimo de 50.353.436 novos eleitores ao longo de 24 anos. Diante desse aumento significativo, seria razoável esperar uma equivalência proporcional nas votações do segundo turno das eleições presidenciais. Gráf. 2
(Fernando Henrique Cardoso – PSDB foi eleito no primeiro turno em 1998).
A série histórica revela uma tendência de redução gradual na porcentagem de votos aptos obtidos pelos vencedores das eleições presidenciais. Essa tendência começou com a eleição de Dilma Rousseff em 2010, quando foi eleita com 41% dos votos aptos, e continuou em 2014, quando foi reeleita com 38% dos votos aptos. Em 2018, Jair Bolsonaro foi eleito presidente com 39% dos votos aptos, e esse mesmo percentual foi alcançado por Lula nas eleições de 2022.
A eleição de 2014 marca o início de um período significativo na política brasileira, logo após as manifestações de 2013. A partir desse momento, observamos um padrão em que as disputas de segundo turno apresentam a menor diferença entre o candidato eleito e seu opositor.
Em 2014, o cenário eleitoral refletiu uma mudança significativa na escolha dos eleitores, com Dilma Rousseff recebendo 38% dos votos aptos, enquanto Aécio Neves obteve 36%, uma diferença de apenas dois pontos percentuais. Essa estreita margem de diferença indica uma clara manifestação da indignação dos eleitores com os candidatos petistas.
Apesar dos eventos marcantes que caracterizaram a eleição de 2018, a vitória alcançada por Jair Bolsonaro, permanece abaixo da marca dos 40% dos votos aptos, estabelecendo uma diferença de sete pontos percentuais em relação a Fernando Haddad, que obteve apenas 32% dos votos aptos. Essa votação representa a menor porcentagem obtida pelo PT na série histórica das eleições presidenciais, sinalizando uma mudança significativa no cenário político brasileiro.
A análise também revela um crescimento na votação dos candidatos que ficaram em segundo lugar nas eleições presidenciais. Em 2014, Aécio Neves conquistou 36% dos votos aptos, enquanto em 2022, Bolsonaro, obteve 37%. Essas duas eleições foram as mais disputadas da série histórica, indicando uma crescente divisão cada vez mais equilibrada do eleitorado brasileiro.
A mudança comportamental dos eleitores brasileiros, iniciada a partir das manifestações de 2013, certamente terá um impacto duradouro nas próximas eleições no Brasil.
Assistimos a uma série de eventos marcantes na recente história política do Brasil: o início da Operação Lava Jato em 2014, o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016, a greve dos caminhoneiros em 2018, a prisão e subsequente soltura do ex-presidente Lula em 2018 e 2019, respectivamente, e, por fim, a pandemia de 2020. Esses eventos não apenas refletem a instabilidade política do país, mas também exerceram um profundo impacto no cenário eleitoral.
Ao revisitar o histórico das últimas duas décadas de eleições no Brasil, é possível vislumbrar uma perspectiva diferente do atual momento político, que vai além da simples polarização política. Essa nova chave de leitura pode enfocar a complexidade das transformações sociais, econômicas e culturais que têm ocorrido no país, bem como as diversas vozes e aspirações que emergiram ao longo desse período.
O deslocamento do poder estava de fato em gestação já na eleição de 2014.
Naquele ano, testemunhamos o ingresso de 41 milhões de novos eleitores, elevando o total de eleitores aptos a votar para 142 milhões. O embate histórico entre o PT e o PSDB estava envolto em uma atmosfera de incompreensão política sobre as preferências que moldariam as futuras eleições no país. Com essa significativa renovação no eleitorado, a eleição de 2018 se desenrolou em um contexto totalmente diferente. Nesse novo cenário, o Partido dos Trabalhadores e, especialmente, o candidato Fernando Haddad, enfrentaram desafios significativos, pois, não possuíam as virtudes necessárias para conquistar a vitória diante das novas demandas e expectativas do eleitorado.
No mesmo ano, testemunhamos o ápice do desalento eleitoral, com um número alarmante de 40 milhões de brasileiros optando por não destinar seu voto a nenhum dos candidatos.
Ao nos aproximarmos das eleições de 2024, muitos analistas políticos interpretam os acontecimentos sob a ótica da polarização. Convictos de que o país está dividido entre “bolsonaristas” e “lulistas”, muitas vezes deixam de considerar a participação ativa das gerações millenials e iGen (geração superconectada). A primeira geração, caracterizada por um desejo de paz e prosperidade, e a segunda, menos rebelde, mais tolerante e menos feliz do que as gerações anteriores, como os baby boomers e a Geração X, como apontado por Jean M. Twenge em 2018.
O fim do abismo entre as classes sociais, especialmente no que diz respeito ao acesso à informação pela internet, emergiu como um dos principais impulsionadores na configuração do atual cenário político, moldando o contexto em que nos encontramos. Nesse cenário, convergem uma ampla gama de desejos, expectativas, frustrações, descontentamentos e indignações, os quais não devem ser confundidos com a polarização histérica de grupos políticos minoritários.
Este panorama instiga à reflexão e à ação, apontando para a necessidade de uma participação cidadã informada e responsável na construção de um futuro democrático e equitativo.
José Carlos Sauer é formado em Filosofia pela PUC-RS, Pesquisador em Comportamento Político no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia – Labô e Diretor no Instituto Methodus. Nos últimos vinte e quatro anos, orientou políticos, governos e instituições nos Estados do Rio Grande do Sul, Acre, Roraima, Amazonas, Tocantins, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Alagoas, Paraná e Goiás.