Anfibologia. Em bom português essa palavra tem como significado a ambiguidade ou a duplicidade de sentido. Ela não nos preocupa quando de fato desejamos salientar um paradoxo ou explicitar uma contradição. Mas ela pode se transformar em um enigma quando aplicada a uma outra palavra para a qual mantemos boas e sérias expectativas. E, eu me refiro aqui à história.
A duplicidade de sentido da palavra história se encontra no fato de que, em direção a ela, nos deparamos com o sentido daquilo que já passou na forma de acontecimentos e fatos que envolveram indivíduos que em sua maioria, já morreram. Mas também nos referimos a história, quando pensamos num texto que foi escrito e que pretendeu narrar o que anteriormente aconteceu. Nesse caso, por vezes, nos reportamos à historiografia.
Dispomos aqui um dilema epistemológico que está na origem da eterna suspeita e desconfiança que recai sobre a história ou mais exatamente sobre aqueles que contam o que ocorreu, ou seja, os historiadores. Lembrando eternamente dessa disposição, temos uma clássica anedota que faz alusão ao nariz de Cleópatra: e se ele, por ser tão enigmático, tivesse sido o real motivo da morte de Marco Antonio, da chegada de Júlio César ao poder e de seu futuro assassinato no Senado romano?
Você pode pensar que essa conversa é somente para os iniciados na profissão, as pessoas que dão importância para minúcias e detalhes que na verdade pouco ou nada importam. Mas não. Dentre os historiadores, as fontes históricas se fazem necessárias e devem ser balizadas pela qualidade das interpretações que elas possibilitam. Isso, sem contar no ideal longínquo que é de se manter imparcial perante o que o aglomerado de indícios possibilita supor. E para quem não está nem aí para essas questões, sobra a mesmo a dúvida sobre o que se falou, sobre quem falou, e se era ou não uma verdade. Os vieses de confirmação, é sabido, sempre derem o ar de sua presença.
Revisões historiográficas – para fazer alusão ao título dessa coluna – ocorrem quando um acontecimento é revisto futuramente. E isso pode acontecer quando novas fontes históricas são descobertas ou quando outras interpretações passam a ter protagonismo. Mas, quando se trata de um acontecimento notadamente político, costumamos estar defronte de outras intenções, elas também políticas.
Vamos ver alguns casos aqui e terminar abordando um que é atual. Para alguns, a proclamação da república foi um golpe militar. Outros acreditam que Getúlio Vargas foi um ditador cruel. Já algumas pessoas acreditam que o regime militar brasileiro preservou a liberdade em nosso país.
Para cada um desses casos, temos pontos de vistas e opiniões distintas e elas se alteram ao longo da história, como meio inclusive de dar suporte para um grupo que então esteja no poder. Getúlio Vargas teve a sua atuação revista quando da chegada do PT ao poder pela primeira vez uma vez que foi exaltado como uma liderança populista que se preocupou com a classe operária. Até o mote de pai dos pobres foi retomado em relação à atuação de uma mandatária ligada a essa legenda. A revisão historiográfica em relação à ditadura militar brasileira ocorreu há bem pouco tempo, sem que para isso fosse feito um exame mais dedicado. Da mesma forma que no caso de Vargas, essa retomada deu-se muito mais por motivos pragmáticos e vinculados ao marketing político.
A última agora diz respeito ao perdão simbólico à ex-presidente Dilma Rousseff que veio a sofrer o impeachment no ano de 2016, conforme sinalizou o presidente Lula recentemente. Ainda que isso venha a acontecer, em nada vai mudar o que cada um de nós compreendeu sobre o acontecimento. Os vieses aqui dificilmente serão revistos e quem apoiou a saída da presidente ou quem era contrário, continuaram exatamente do mesmo modo.
O capital explorado aqui é de outra cepa. Ele alimenta as chamadas guerras culturais. Esse tipo de manifestação tem provocado engajamento nas redes sociais especialmente através do ódio. E esse sentimento é tudo o que um candidato sereno deseja para a sua vida profissional. Retomar as controvérsias políticas já mornas, cumpre a função de manter as lanças em punho o que nos permite supor que os opostos realmente mais se atraem e dependem de sua repulsão. E é exatamente por isso que investem nela.
Mas, como tantos outros casos passados e outros que virão pela frente, esse será prontamente esquecido. A manutenção da polarização nas redes sociais exige perpetuamente que novas situações sejam inventadas e apresentadas.
Finalmente, para bem longe desse estado de coisas, as revisões historiográficas mais interessantes são aquelas que se acontecem após a passagem de mais de 200 anos. E isto porque estamos muito longe da agressividade, da disputa e dos ruídos dos tempos mais próximos a esses acontecimentos.
Fernando Amed é Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do LABÔ.
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