Há certas coisas que não podem faltar nas eleições brasileiras: ex-atleta ou ex-BBB se candidatando, confusão em debates, fake news a rodo no WhatsApp (infelizmente) e comentarista político alertando a respeito do voto evangélico. Ah, o famoso voto evangélico: todo mundo sabe o que é, mas poucos se atrevem a explicar como funciona. O que é compreensível, visto que pouco sabemos sobre quem são os evangélicos brasileiros, e muito menos sobre seus comportamentos eleitorais. Com isso, sobram achismos com doses cavalares de preconceito que classifica todo e qualquer evangélico como um conservador voraz ou, em discussões mais acaloradas, um extremista.
O voto evangélico é, antes de tudo, uma escolha de fé. E quando falo em fé, não me refiro à filiação religiosa. É sobre acreditar ser possível transformar a realidade. E olha que curioso: outros tantos votos de pertencimento (em determinados casos, identitários) são baseados nessa mesma premissa onde à escolha do eleitor é a forma (ou mesmo força) que a pessoa tem para mudar sua realidade. “Ah, mas as pautas evangélicas não são de pertencimento, muito menos identitárias?”. Fale isso para quem compra um carro e crê que só foi possível com a graça de Deus; ou para quem dedica horas dando testemunho de doenças curadas ou vícios superados por acreditar estar em dívida com Deus. A crença faz parte da identidade de grande parcela desses eleitores, e mesmo muitos se auto-intitulam crentes.
Mas, o que transforma o crente em um eleitor evangélico? Não é somente a fé.
Caso a fé fosse pré-requisito único seu comportamento eleitoral, teríamos uma bancada católica, (ainda) a religião com mais adeptos no país. O espiritismo — 3% dos brasileiros se declaram espíritas — teria congressistas eleitos em defesa de suas bandeiras. Os evangélicos somam 1/3 dos brasileiros e 1/4 dos deputados federais são integrantes da bancada evangélica, fora os senadores autodeclarados militantes dessa causa. O que motiva esse eleitor é sua experiência prévia vendo as mais variadas denominações operarem com sucesso em áreas ou causas onde o Estado não consegue, ou mesmo não fazem questão de atuar.
Li tardiamente o livro O Povo de Deus: quem são os evangélicos e porque eles importam, relato da experiência do antropólogo Juliano Spyer em uma comunidade com forte presença evangélica na cidade de Salvador. O que me marcou foi perceber que não podemos descrever o evangélico brasileiro sem uma prévia compreensão sobre como a fé, por meio do trabalho de missionários nas regiões mais vulneráveis do Brasil, muda realidades.
Há milhares de relatos de resgate de pessoas em situação de vulnerabilidade, renovação e/ou construção de redes de contatos e renovação das esperanças. E não apenas a esperança em uma força divina, mas esperança em como seu esforço — ou o esforço de seus pares — pode mudar a realidade de sua comunidade. Política é sobre isso, não é?
Está claro que a política, ou a inoperância da classe política, chamou o eleitor evangélico à ação. Mas como conversar com esses eleitores? Primeiramente, precisamos desconstruir algumas noções pré-definidas sobre os evangélicos e seus comportamentos eleitorais. Há muitos pontos a serem abordados, mas considerando a limitação de espaço, deixe-me escrever sobre dois pontos: os evangélicos não pensam todos da mesma maneira, e nem todo pastor decide o voto pelo eleitor.
Os evangélicos não pensam todos da mesma maneira. Por isso, não podem ser compreendidos como os outros ou um grupo com ideias homogêneas entre si que busca instituir uma sétima república. Há tanta heterogenia entre os evangélicos como observado na população em sua totalidade. O Bispo Edir Macedo é tão evangélico quanto Neymar ou o ex-pugilista Popó. Ou, caso queiramos nos restringir ao campo político, Silas Malafaia é irmão em fé do Pastor Henrique Vieira, deputado federal filiado ao PSOL fluminense. Ninguém é apenas evangélico. Estamos falando de mulheres, negros, nordestinos e, em determinados casos, conservadores evangélica(o)s.
O pastor é tão relevante no voto do evangélico quanto um qualquer líder comunitário. E não estamos falando de um pastor que dita o comportamento eleitoral dos aproximadamente 70 milhões de crentes. Há inúmeras denominações com posicionamentos diversos. A orientação eleitoral do Apóstolo Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, certamente não será a mesma da deputada federal Benedita da Silva, uma das maiores lideranças evangélicas do PT. Há mesmo uma heterogenia na bancada temática: o partido Republicanos é conhecido por ser o braço político da Igreja Universal do Reino de Deus — IURD, à medida que o PSC está mais alinhado à Assembleia de Deus; em ambos os casos, há Batistas nos diretórios nacionais.
O eleitor evangélico existe e, em média, atua de forma tão intensa quanto outros grupos sociais que veem na política um caminho para superar suas carências e responder a seus pleitos. O que os diferenciam é seu volume — estamos falando de uma população maior que países como França, Itália e Espanha — e sua capilaridade (estão em qualquer zona eleitoral brasileira).
Quem quer fazer política e, principalmente, ser eleito, precisa tratar essa parcela da população de maneira séria, sem preconceitos. O voto do evangélico vale o mesmo que o voto de qualquer outro brasileiro. E muitos elegeram políticos de postura ou histórico questionáveis por falta de diálogo entre os bons políticos e suas válidas demandas. Por que não dar ao eleitor evangélico motivos para crer em sua candidatura?
Paulo Petitinga é estrategista político, mestre em Comunicação e Opinião Pública pela Universidade Católica de Brasília, e pesquisador-convidado do Labô – Laboratório de Política, Comportamento e Mídia, da PUC-SP.
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Fale o que o eleitor entende ou fique calado