Algumas publicações recentes tem investido no ódio como um objeto de estudos, partindo do princípio de que ele é um importante ativo nas campanhas políticas. Temos acompanhado a diminuição da ênfase no que no passado se falava, uma campanha propositiva. Pode ser uma situação passageira, quem sabe. Mas sobre o futuro, não nos arriscamos a produzir algum tipo de juízo preditivo. Mas podemos supor aqui o que parece conceitual e com poder de permanência, especialmente quando pensamos nos diferentes – não tanto assim – modos de se fazer campanhas políticas no mundo.
Antes de mais nada, alguns aspectos óbvios, mas necessários de serem retomados. A democracia necessita do voto para se legitimar, o mesmo valendo para quem for eleito para um cargo público. Para tanto, o candidato necessita ser evidentemente reconhecido, ter seu nome lembrado e associado ao fazer político, profissional ou não. O candidato outsider ganha espaço nas eleições quando seu nome e atuação guardam alguma relação com gestão, eficiência ou simplesmente filantropia. E esses aspectos são bastante próximos do significado mais amplo da política.
Uma vez que a democracia está condicionada à escolha, é importante que pensemos o que pode ser realizado para que um candidato tenha o seu nome lembrado. Será que o investimento no ódio é um ativo seguro nas campanhas políticas? A pesquisadora Carolin Emcke refletiu sobre esse tema. Em seu livro, Contra o ódio (São Paulo: Editora Ayiné, 2020), Emcke fez um bom mapeamento do ódio do ponto de vista do comportamento de quem é o agente de sua manifestação e daquele que é odiado. E essa reflexão veio estimulada pelos usos contemporâneos do ódio como meio de se manter presente e lembrado.
Para a autora, quem odeia, deve estar seguro, uma vez que não se pode odiar duvidando do ódio. Que força teria alguém que odeia possuindo algum tipo de peso na consciência ou um sentimento de culpa não devidamente resolvido? No Brasil, diríamos que quem manifesta politicamente o seu ódio, tem “papo reto, opinião e atitude, sangue nos olhos e faca nos dentes”. Veja que tudo isso junto pode mobilizar e provocar empatia uma vez que o seu oposto é, “frouxidão, amarelar ou brochar”. Todas essas expressões traduzem sentimentos que dificilmente cruzam as portas da academia, mas fazem um tremendo sentido, preconceitos aqui incluídos e percebidos.
O ódio vem articulado com ressentimento e despeito na medida em que, ainda de acordo com Emcke, o agente do ódio questiona se aqueles que defendem causas identitárias – de longe, um grande veículo para o rancor – já não deveriam se dar por satisfeitos: o que mais eles querem de nós? O pronome pessoal “nós” não é escolhido ao acaso uma vez que agrega sentimentos compartilhados e alheios daqueles que padecem do sentimento de exclusão. Exclusão aqui de quem se sente alijado da discussão política por conta de ser rebaixado em suas manifestações. Lembrando que o ódio melhor se apresenta quando justificado por frustrações e recalques, cujo agente do ódio investe pesado e de forma genérica como meio de evidenciar tais manifestações nos outros.
Para a autora, aquele que respeita parece ter vergonha e quem ataca, se orgulha. A construção dessa persona política passa pela desinibição e pelo enfrentamento dos bons modos, vistos aqui como amarras e como incentivo ao opositor fraco. Por aqui, “falar sem papas na língua, doa a quem doer” transmite esse sentimento. A primeira impressão que temos é que se trata de uma posição viril cujo fenótipo é masculino. O feminino aqui vem como apoio e suporte desse tipo de manifestação.
Essa obra, publicada primeiramente na Alemanha, traduz uma preocupação tristemente histórica, em especial, nesse país. Ela também produz sentido na Itália ou Polônia, países que também viram os movimentos políticos de direita recrudescerem. E no Brasil, ela faz sentido?
Em nosso país, o ódio pode ser percebido na aceitação tácita da dinâmica do gigante adormecido. Nota-se um estranhamento para com a modernidade o que é um paradoxo. Do ponto de vista econômico, acolhemos expressões como agrobusiness ou coaching, mas não concordamos com reconfigurações dos papeis de gênero ou raça. No âmbito das guerras culturais, prolifera-se o ódio contra aqueles que se exibem por sua abertura frente aos preconceitos, mas que parecem humilhar quem de fato paga “as conta e os buleto”. Motivos não faltam para se semear ódio e discórdia uma vez que sempre temos uma fatura que ainda não foi paga e é só colocar o dedo nessa ferida para que muito ressentimento seja devidamente abrasado.
Uma questão que sobra é se uma campanha permeada pelo exercício calculado do ódio tem condições de perseverar. A pilha que se bota nas redes sociais (ou antissociais?) parece ter um tempo curto de duração, até mesmo porque ódio, rancor e ressentimento consomem uma energia danada. A se ver e refletir nas campanhas que ganham força em 2024.
Fernando Amed é Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do LABÔ.
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