O ciclo eleitoral brasileiro entre 2014 e 2022 revela um processo sistemático de realinhamento ideológico que transformou a paisagem política do país. Fundamentado em uma sólida análise de comportamento político, este estudo investiga como se deu a redistribuição do voto entre os campos progressista, conservador e de centro ao longo de três eleições consecutivas, com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral (T.S.E.) e em critérios classificatórios consolidados na literatura da Ciência Política.
Os dados agregam votos válidos por partido e por estado para todos os cargos eletivos (deputados, senadores, governadores e presidente), permitindo uma leitura transversal do comportamento eleitoral. As legendas foram agrupadas em três blocos ideológicos: progressista (esquerda e centro-esquerda), conservador (direita e centro-direita) e centro (partidos moderados e pragmáticos). A partir dessa categorização, é possível identificar tendências de fundo que ultrapassam variações conjunturais e apontam para uma reconfiguração estrutural das preferências do eleitorado.
A principal tendência do período é a intensificação da polarização ideológica, com a consolidação do campo conservador e o enfraquecimento progressivo do centro político. Entre 2014 e 2022, o conservadorismo expandiu sua influência territorial e consolidou bases eleitorais fiéis, especialmente nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sul. O centro político, por sua vez, entrou em colapso: partidos como PSDB, MDB e PPS, que já haviam desempenhado papéis centrais na redemocratização e na estabilização institucional, perderam densidade eleitoral, narrativa e identidade programática, tornando-se marginais no debate público.
Por outro lado, o campo progressista apresentou sinais de resiliência, especialmente no Nordeste e em determinados centros urbanos. Ainda que tenha sofrido retrações pontuais, manteve uma base social e territorial consistente, alimentada por vínculos históricos com políticas de proteção social, redistribuição de renda e presença estatal.
O avanço do campo conservador foi especialmente expressivo nos estados do Acre, Rondônia, Mato Grosso, Santa Catarina e Paraná, todos com crescimento superior a 20 pontos percentuais na votação destinada a partidos alinhados à direita. Essa mudança não representa apenas uma oscilação de curto prazo, mas sim uma realocação estrutural do eleitorado, associada à ascensão de uma nova direita marcada por discurso moralizante, liberalismo seletivo, forte presença religiosa e crítica ao sistema político tradicional.
Essa nova configuração eleitoral se sustenta em lideranças com apelo regional, no uso intensivo de redes sociais e na rejeição a partidos historicamente vinculados ao poder, sobretudo o PT. A construção de um discurso polarizador e identitário reforçou o sentimento de pertencimento político e contribuiu para a fidelização de um eleitorado conservador ativo e mobilizado.
Em contrapartida, o Nordeste manteve-se como principal reduto do campo progressista. Estados como Piauí, Ceará e Bahia sustentaram percentuais majoritários de voto em partidos de esquerda, mesmo diante do reposicionamento do cenário nacional. Essa resiliência se explica por três fatores centrais: a memória social de políticas redistributivas implementadas nas duas primeiras décadas do século XXI, o enraizamento de lideranças locais vinculadas à esquerda e a forte identidade regional com o projeto de inclusão social.
Ainda assim, houve perda de força de siglas de centro-esquerda, como o PSB, que enfrentou desafios para se distinguir ideologicamente e manter coesão programática frente à ascensão de polos mais claros. Essa conjuntura exigiu uma aproximação mais direta com o campo progressista tradicional, fortalecendo alianças com o PT e com partidos de esquerda programática. A região, nesse contexto, consolidou-se não apenas como base eleitoral, mas como bastião simbólico da resistência ao avanço conservador no restante do país.
Talvez a mudança mais dramática do período tenha sido o colapso do centro. Em 2014, partidos moderados ainda desempenhavam papéis estratégicos na articulação política nacional. Em diversos estados, o centro somava mais de 20% dos votos válidos, funcionando como eixo de estabilidade institucional. No entanto, com o agravamento da crise de representação, esses partidos perderam espaço para alternativas mais polarizadas.
Em 2022, a presença centrista ficou abaixo de 10% em quase todos os estados. A tentativa de consolidação de uma “terceira via” fracassou por ausência de lideranças carismáticas, falta de clareza programática e desconexão com as demandas populares. Esse esvaziamento criou um vácuo político ocupado, de um lado, pela direita mobilizadora, e de outro, por uma esquerda reorganizada. A falência do centro não foi apenas eleitoral, mas simbólica: perdeu-se o discurso de moderação como virtude, abrindo espaço para posicionamentos mais radicais ou identitários.
A reorganização ideológica também impactou profundamente as principais siglas do país. O PSDB viu seu capital eleitoral desmoronar, sem conseguir se reinventar em um ambiente político dominado pela polarização. O PSB perdeu espaço frente ao fortalecimento do PT e de partidos de esquerda emergentes. Já o DEM desapareceu como marca política, absorvido pela União Brasil, o que evidencia a crise de identidade das legendas tradicionais frente às novas exigências do eleitorado.
Esses movimentos indicam não apenas a perda de votos, mas o desgaste das estruturas partidárias que falharam em se adaptar às mudanças do campo político. A coerência programática tornou-se um ativo raro, e a sobrevivência eleitoral passou a depender mais da capacidade de se alinhar aos sentimentos dominantes — conservadorismo, ressentimento, identidade regional — do que da construção de plataformas políticas robustas.
A tabela ilustra algumas das mudanças mais significativas observadas entre 2014 e 2022:
Estado | Campo 2014 | Campo 2022 | Mudança (%) |
Acre | Progressista | Conservador | +21 pp (conservador) |
Mato Grosso | Centro | Conservador | +25 pp (conservador) |
Santa Catarina | Centro | Conservador | +18 pp (conservador) |
Paraná | Progressista | Conservador | +20 pp (conservador) |
Essas viradas não são apenas deslocamentos eleitorais, mas transformações estruturais no alinhamento ideológico dos eleitores. Nos casos do Acre e do Paraná, a substituição do campo progressista pelo conservador representa ruptura com padrões anteriores. Já em Mato Grosso e Santa Catarina, o colapso do centro abriu espaço para uma direita mais assertiva, indicando a fragilidade das mediações institucionais frente à radicalização política.
A análise por região reforça a ideia de que a polarização não é apenas ideológica, mas também geográfica. O Brasil se tornou um mosaico político claramente segmentado, com blocos regionais que expressam identidades ideológicas relativamente homogêneas.
Norte: Predominância conservadora, com votos progressistas restritos a minorias urbanas.
Nordeste: Única região de hegemonia progressista, sustentada por forte identidade política e social.
Centro-Oeste: Consolidação conservadora, com apoio crescente ao agronegócio e à moral religiosa.
Sudeste: Dividido, com tendência de crescimento conservador (SP e ES) e equilíbrio em Minas Gerais.
Sul: Virada completa para o campo conservador (PR e SC), com colapso do centro e retração do progressismo.
Essa territorialização reconfigura o cálculo eleitoral e exige que os partidos atuem de forma segmentada, com estratégias específicas para cada bloco regional. A universalização de discursos perde eficácia num país onde o voto passou a expressar não apenas preferências políticas, mas também pertencimentos culturais e identitários.
Entre 2014 e 2022, o eleitorado brasileiro passou por um processo de polarização ideológica que se refletiu em mudanças duradouras na distribuição do voto. O colapso do centro, a ascensão conservadora e a resistência progressista desenham um novo mapa político marcado pela segmentação e pela radicalização.
O cenário de 2026 tende a aprofundar essa configuração, exigindo das forças políticas não apenas capacidade de articulação, mas coerência programática, capacidade de enraizamento regional e narrativas claras.
A disputa política, cada vez mais, será moldada por dinâmicas territoriais, identitárias e ideológicas, demandando dos atores partidários uma leitura estratégica do novo eleitorado brasileiro.
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José Carlos Sauer é formado em Filosofia pela PUC-RS, pesquisador especializado em comportamento político, consultor estratégico, analista de dados e diretor do Instituto Methodus. Com mais de 25 anos de experiência no cenário eleitoral brasileiro, consolidou seu conhecimento sobre dinâmica do comportamento eleitoral, análise de tendências e desenvolvimento de estratégias políticas eficazes. Sua atuação se destaca na transformação de dados em inteligência aplicada, otimizando campanhas e decisões dentro de ambientes políticos altamente competitivos.